O Corvo publica capítulo de “Se eu fosse Chão”, novo livro de Nuno Camarneiro
Um hotel em três épocas diferentes é o cenário de “Se eu fosse chão”, o novo livro de contos de Nuno Camarneiro. Cada quarto conta uma historia. O Corvo espreitou pela fechadura do quarto 113 e conta-lhe o que viu. Nuno Camarneiro é engenheiro, investigador e escritor. Publicou dois romances: “No meu Peito não cabem pássaros” (2011) e “Debaixo de Algum Céu” (2012 -Prémio Leya). “Se eu fosse chão” (Dom Quixote) é o seu mais recente livro.
Ilustração: Sofia Morais
Quarto 113
Lady Cooke e Lord Cooke
– Não sei se é deste calor. Sinto o corpo lento, como se tivesse permanecido noutro fuso horário e estivesse constantemente a arrastá-lo do passado. São quantas horas de diferença mesmo?
– Creio que permanecemos no horário de Greenwich, meu caro; se o seu corpo anda atrasado, talvez o tenha deixado em qualquer outro país, é típico seu, só não perde a cabeça porque a não tem agarrada ao corpo.
– Não seria a primeira vez que o meu corpo ficava algures no estrangeiro. Recorda-se de Pamplona? Se se recordar, por favor conte-me, há tanto que eu gostaria de saber… Creio até que esta alergia no pulso tem qualquer coisa de basco.
– Com tudo o que se passou em Pamplona até me espanta que não se tenha esquecido da sua língua.
– Lembro-me de uma noite com um touro… houve uma noite com um touro, minha cara?
– Mais de uma, entre muitos outros animais selvagens, nem todos tão compreensivos e pacientes como os touros bascos.
– Pamplona…
– Pois eu prefiro este país, sempre achei a Espanha excessiva, um país com défice de atenção, pense nos toreros, no flamenco, nessas operetas horrendas cheias de facas e bigodes, os espanhóis são crianças que ultrapassaram em muito a hora de ir para a cama.
– Em Espanha não há razão para ir para a cama, minha cara, a menos que alguém nos espere.
– Não seja vulgar.
– Já aqui… a cama parece uma opção inteiramente justificável, viu o semblante das senhoras hoje no salão? Até me espantou que não pedissem uma marcha fúnebre à orquestra, seria mais apropriado, não acha? Poderíamos seguir todos para o nosso próprio enterro, que ninguém ficaria mais triste do que já estava.
– Não seja exagerado.
– De modo nenhum, acho que se morreria lindamente neste país.
– Mas avise com antecedência, morrer no estrangeiro obriga a muita burocracia, e pode estragar umas férias.
– Não se inquiete, minha cara, nada farei para importunar este nosso cortejo fúnebre atlântico.
– Importa-se de apagar a luz?
– Mas ainda é noite, tem a certeza?
– Importa-se de apagar a luz?
– Se quiser, deixo crescer o bigode e mudo o nome para Pablo ainda antes de o Sol nascer.
– Importa-se de apagar a luz?
– Ai, Pamplona…
“Se eu fosse Chão”
Nuno Camarneiro
Dom Quixote