A Colina de Santana, onde vai ocorrer a próxima grande operação urbanística de Lisboa, resistiu ao Terramoto de 1755, mas é capaz de não aguentar o mandato do vereador Manuel Salgado.
A ideia pairou no debate aceso que decorreu terça-feira à tarde e noite, na Assembleia Municipal de Lisboa, o primeiro de cinco dedicados à intervenção prevista para este antigo conjunto urbano que afectará alguns dos mais antigos e conhecidos hospitais públicos da cidade — São José, Capuchos, Santa Marta, Miguel Bombarda ou São Lázaro -, que deverão fechar para serem substituídos pelo futuro Hospital de Todos-os-Santos, a construir em Marvila.
Este mês, fecha São Lázaro, por “não ter condições”, anunciou Francisco Cal, presidente da empresa que agora detém os estabelecimentos de saúde, a Estamo. No seu conjunto, os hospitais desta zona da cidade apoiam 1,2 milhões de pessoas.
“Por que se quer destruir os hospitais?”, perguntou a médica Elsa Soares, para dizer que antevê algo “pior que o Terramoto de 1755”. O deputado municipal e médico Carlos Silva Santos (PCP) comentaria, pouco depois, os esclarecimentos sobre o andamento do projecto como a “encrenca tipicamente lisboeta do facto consumado” e interrogou: “Vamos ver se temos que dizer que a Colina de Santana resistiu a tudo menos a Manuel Salgado”.
Salgado, Francisco Cal, o médico Luís Cunha Ribeiro, presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, e a arquitecta Inês Lobo, responsável pelo estudo urbano preparatório da intervenção, abriram o debate, onde a classe médica esteve marcadamente presente, e em claro desacordo.
Os quatro primeiros intervenientes deram a operação urbanística como inevitável, há muito delineada, já desde o tempo do ministro da Saúde Correia de Campos, e tema de frequentes consultas com a Câmara. Só falta fazer o novo hospital em Marvila, estando por decidir a forma do projecto financeiro: se por empreitada, se por Parceria Público-Privada. A unidade, a erguer em terreno comprado à Câmara, deverá servir 267 mil lisboetas, segundo foi anunciado.
O fim dos hospitais na Colina de Santana acabará com os pólos de atracção desta zona da cidade, envelhecida e degradada. Haverá que criar outros neste “mundo à parte, a dois passos do centro” de Lisboa, como lhe chamou Salgado.
O vice-presidente da CML traçou um quadro grandioso da intervenção que poucos ainda conhecem, dizendo que “é uma grande oportunidade para reabilitar o centro da cidade”, que é “vital para a sustentabilidade”. Terá estacionamento para residentes, elevadores a partir da Avenida da Liberdade, “novos jardins e miradouros” e incubadoras de empresas. Nesta zona, onde há “fogos sem retrete e sem casa de banho”, deverá nascer um “eco-bairro histórico” que atraia o turismo cultural. Outro motivo de atracção desta colina – explicou o vereador – reside na circunstância de ter um alto interesse residencial, pois aqui é possível habitar “de forma recatada e aprazível” muito perto do centro da cidade.
Do público, veio a crítica de Vítor Freire de que “não será com habitação para classes abastadas quem entram e saem desses prédios em carros de alta cilindrada que se vai resolver a desertificação” da zona. “Toda a opção de base está errada”, rematou.
Na assistência ouviram-se repetidas queixas quanto à pouca transparência de todo este processo e apelos a uma verdadeira discussão pública do assunto – que dê aos participantes mais do que os “dois ou três minutos” concedidos aos cidadãos inscritos para falar.
Repetidos foram também os comentários defendendo a manutenção de alguns hospitais na colina. Professor jubilado do IST, António Brotas diria até: “Prefiro ir morrer num hospital velho, como era o de Arroios”. O engenheiro lamentou “esta ânsia de destruir edifícios antigos”.
O projecto tem que ser alterado, disse na ocasião o cirurgião António Gentil Martins, comentando que a intervenção na chamada colina dos hospitais é assunto a “ser discutido, mas não a nível de gabinetes”. “Tenho esperança que isto não seja um facto consumado”, disse.
Simonetta Luz Afonso (PS), presidente da Comissão Municipal de Cultura, advertiu para a importância de se preservar o património móvel e imaterial ligado à história da saúde de Lisboa. “Sentimos que há pouca informação quanto à preservação e divulgação deste património”, declarou.
Já no termo do debate, de cerca de três horas, o presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo lembrou que as decisões relativas aos hospitais “foram tomadas há mais de dez anos por pessoas capazes”. Refutou a acusação de “novo-riquismo” na construção do Hospital de Todos-os-Santos e perguntou se algum doente hesitaria entre um estabelecimento novo e um hospital “com enfermarias com um pé direito de 8,5 metros, sanitários péssimos mas azulejos fantásticos, com fendas nas paredes”, onde é preciso “aumentar o número de cobertores porque não se consegue aquecer uma enfermaria”. “Se um dia for internado, não quero ir para um edifício desses”, afirmou.
O próximo debate sobre a Colina de Santana está marcado para 14 Janeiro de 2014 e
deverá focar o impacto na saúde pública desta reformulação da cobertura hospitalar da cidade.
Texto: Francisco Neves Fotografia: Samuel Alemão