Eléctrico 28 está cada vez mais cheio de turistas e, por isso, os moradores lamentam não conseguirem viajar
Cada vez mais turistas procuram o eléctrico 28 para conhecerem Lisboa. Quem utiliza o transporte público diariamente queixa-se da sobrelotação da carreira e de não conseguir entrar na carruagem. Um grupo de moradores da Baixa e do Castelo lançou, por isso, no Verão passado, uma petição, que deu agora entrada na Assembleia Municipal de Lisboa (AML), a exigir a tomada de medidas urgentes para que o eléctrico 28 não seja tomado em exclusivo pelos visitantes. Alheios aos problemas diários dos habitantes, os turistas dizem recordar a infância e sentirem-se numa montanha-russa ao viajarem no veículo. Nesta descoberta da capital portuguesa, feita por sinuosos caminhos, muitos ficam fascinados pelo classicismo do eléctrico e sentem-se “num filme do século XX”. O Corvo entrou num dos ícones da cidade para perceber os desafios de um percurso partilhado, todos os dias, entre cada vez menos moradores e mais visitantes estrangeiros.
Ao final de um dia de semana, um grupo de turistas chega à Praça Martim Moniz, numa das últimas viagens do eléctrico 28 daquela tarde. Rita Melnar, 57 anos, vem cabisbaixa. “Não gostei nada, foi desconfortável. Estava cheio de turistas. É pena, é um transporte autêntico”, lamenta a turista húngara, depois de andar pela primeira vez num dos símbolos da cidade. O sentimento é partilhado pelos moradores do centro histórico de Lisboa que utilizam o meio de transporte público no seu quotidiano. “Chegam a passar por mim quatro ou cinco eléctricos cheios, e não consigo entrar. O eléctrico 28 já não é para os portugueses. O turismo é importante para a economia da cidade, mas Lisboa não tem estrutura para receber tanta gente”, critica João Louro, 65 anos, sentado na paragem.
O habitante já sofreu diversos acidentes cardiovasculares e, por isso, não pode fazer longas distâncias a pé, tendo sempre de utilizar o eléctrico nas suas deslocações pela cidade. Mas nem sempre o consegue. “Tive uma situação caricata, em que o motorista disse que não arrancava se ninguém me desse lugar. Alguns turistas, miúdos mais novos, disseram que tinham pago muito pelo bilhete e tinham direito a ir sentados”, recorda. João Louro mora no Martim Moniz, mas já viveu na Graça, e alerta para as dificuldades de quem lá reside. “Alguns dos habitantes da Graça, mais idosos, não têm outro meio de transporte. O dia-a-dia deles é muito complicado”, diz.

A sobrelotação do 28 torna-o, muitas vezes, inviável como transporte público acessível a todos
Horas antes, ainda debaixo de sol intenso, alguns turistas esperavam ansiosos pela chegada do eléctrico 28. Transposta a porta de entrada, não conseguem esconder o deslumbramento ao observarem a estrutura antiga e bem conservada do veículo eléctrico. Assim que o guarda-freio põe a carreira em marcha, as reacções não demoram a surgir. Comenta-se o tecto em abóbada de madeira, as janelas semiabertas e os bancos em tons de vermelho gasto. Na subida até ao emblemático miradouro de Santa Luzia, cumprimentam os moradores dos bairros tradicionais, onde ainda se vê roupa estendida à janela, e elogiam o caminho serpenteado pelas colinas de Lisboa que o eléctrico ajuda a percorrer.
“Gosto das subidas e descidas deste trajecto, tem-se uma perspectiva completamente diferente de Lisboa. Estou a ter uma experiência muito melhor de visita à cidade”, diz Lynda Whitty, 67 anos, natural de Melbourne, Austrália, enquanto prepara a máquina fotográfica para registar todos os momentos do itinerário que vai percorrendo. Lynda já tinha estado em Portugal há 25 anos, mas é a primeira vez que anda sobre carris na capital portuguesa. “Lisboa é maravilhosa, já estive em 60 países e Portugal é o meu preferido. Melbourne é uma cidade muito jovem, Lisboa tem muita história e o que gosto mais de ver é a construção antiga, é tão bonita”, suspira.
Durante a viagem, os idiomas misturam-se, ouvem-se gargalhadas e consultam-se os mapas da cidade, numa azáfama que nem sempre deixa perceber quantas línguas se fala ao mesmo tempo. Alguns dos passageiros planeiam os próximos dias de estadia na cidade, mas a maioria viaja completamente indiferente ao que se passa no interior do vagão, absorta pela passagem junto ao miradouro de Santa Luzia, à Sé de Lisboa, pela arquitectura das igrejas e a “simplicidade dos habitantes”. “Os portugueses são mais calmos, não apitam enquanto conduzem, nem se exaltam. São muito simpáticos, este país é um paraíso”, diz Françoise Thomas, 64 anos. Já esteve outras vezes em Lisboa, mas nas outras visitas à capital portuguesa não conseguiu viajar no eléctrico 28. Na tarde desta terça-feira, percorreu duas vezes o trajecto entre o Martim Moniz e o Cemitério dos Prazeres. “Faz-me lembrar a infância, é como andar numa montanha-russa, é tão divertido que decidi andar outra vez”, diz empolgada a turista francesa.
“Castelo de São Jorge! São Jorge Castle!”, avisa o guarda-freio, desconfiado pela permanência dos passageiros dentro da carruagem. Estamos no miradouro de Santa Luzia, a paragem mais próxima do Castelo, um dos monumentos mais visitados pelos estrangeiros. “Não queremos sair porque o que gostamos mesmo é da viagem, isto é uma aventura”, diz Françoise Thomas. O vagão começa a encher-se de visitantes que regressam do miradouro. Na entrada, empurram-se à procura de um lugar. Martina, 37 anos, e Michael, 40 anos, naturais da Polónia, entram ofegantes. “Estivemos a percorrer o centro histórico a pé, estamos exaustos, as subidas são muito ingremes”, diz Michael, no segundo dia de visita a Lisboa. Enquanto Michael descansa, Martina observa o eléctrico 28 sem conseguir esconder o fascínio. “Parece que estamos num filme do século XX, a construção é antiga e romântica”, comenta.
Ao subir a Calçada da Estrela, um carro parado sobre os carris impede o eléctrico de prosseguir viagem. Ouvem-se buzinadelas e os passageiros, curiosos, espreitam pelas janelas para perceberem o que está a acontecer. Junto ao Cemitério dos Prazeres, a situação repete-se, para surpresa dos turistas, que comentam o insólito, entre risos. Um miúdo pendura também é alvo de comentários por parte de turistas alemães, surpreendidos com a infracção. “Nunca tinha visto pessoas a viajarem à boleia do transporte”, comenta Renate, 51 anos, que aproveitou uma promoção de uma agência de viagens para passar três noites em Lisboa. “O que mais me agradou foram os preços, é muito barato visitar Portugal”, diz. Ao lado, Andrew Ashmer, 35 anos, de Toronto, Canadá, também elogia a capital, onde está pela primeira vez. “Estou a gostar muito, andar de eléctrico é como estar num parque de diversões, estou a adorar”, diz, entusiasmado.
O encanto desvanece-se, contudo, ao longo do caminho, quando começam a entrar mais pessoas. E, muitas, lá de fora, nas paragens, abanam a cabeça em sinal de desaprovação por não conseguirem viajar no eléctrico. Para estas, há muito tempo que o transporte perdeu o fascínio. Quem utiliza a carreira todos os dias queixa-se de nem sempre conseguir arranjar lugar e, quando consegue, critica o desconforto da viagem. Preocupados com a falta de alternativas de transportes públicos para fazer o percurso, um grupo de moradores da Baixa e do Castelo lançou uma petição, no final do passado mês de Julho, a qual deu entrada na Assembleia Municipal de Lisboa (AML) a 23 de Outubro.
O abaixo-assinado, que conta com 719 assinaturas, pede a tomada de medidas urgentes para que o eléctrico 28 não seja tomado em exclusivo pelos turistas. Os peticionário sugerem o aumento do número das unidades em circulação, a entrada ao serviço de mini-autocarros nas horas de ponta que, de forma alternada, possam complementar a oferta dos eléctricos, e o fim da possibilidade de se comprar bilhete a bordo – para diminuir o tempo dos percursos e evitar o incumprimento dos horários. Os moradores querem que haja lugar para todos, residentes e visitantes da cidade, de forma a tornar a viagem pelas colinas de Lisboa mais agradável. “O eléctrico 28 percorre um eixo para o qual não existem alternativas de transporte público. Não é apenas uma atracção turística: é um meio de transporte fundamental para inúmeras pessoas que residem, trabalham ou frequentam o ensino ao longo desse extenso eixo”, lê-se na subscrição.
Os habitantes dizem que a experiência da viagem é “desconfortável, pouco fiável, demorada e insegura, quebrando o encanto e tornando a dependência desta linha num problema diário”. As condições da viagem chegam a ser “degradantes”, com “passageiros apertadíssimos, idosos sem alternativa de deslocação que viajam em condições de desconforto e crianças pequenas que não conseguem lugar sentado”. “Alcançar a porta de saída é tarefa olímpica e sair é um alívio”, lê-se. Na petição critica-se, ainda, os carros parados ou estacionados sobre os carris ao longo do percurso, e sugere-se a implementação de um “sistema de actuação rápida”, entre a Carris, Polícia Municipal, Polícia de Segurança Pública (PSP) e Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa (EMEL), para resolver estas situações.
Questionada por O Corvo sobre o que está a fazer para melhorar a qualidade da viagem do eléctrico 28, a Carris diz que vai aumentar o número de eléctricos em circulação, mas, neste momento, ainda está “dependente da chegada de novas unidades”. “A Carris está ainda a estudar outras alternativas, como a instalação de máquinas de venda de bilhetes nas paragens mais movimentadas e a possibilidade de vender bilhetes na app Carris, para facilitar o acesso ao eléctrico 28”, avança a O Corvo a porta-voz da empresa, Inês Andrade. Os mini-autocarros, garante ainda, “nunca deixaram de circular no percurso da carreira 28”, entre os Prazeres e o Largo Camões, mas só percorrem o trajecto “nos dias úteis”. Quanto à implementação de um “sistema de actuação rápida” entre a Carris, a Polícia Municipal, a PSP e a EMEL para as situações de carros estacionados, que impeçam a passagem do eléctrico, a Carris informa que este já se encontra a funcionar.
* Nota redactorial: texto actualizado às 15h48 de 19 de Novembro, com a resposta da Carris.