Avenida Duque de Loulé “qualquer dia é só cenário”
O número 70 da Avenida Duque de Loulé é um edifício carregado de memórias da vida artística e literária da cidade. Nele funcionaram redacções de jornais, revistas e nasceu uma editora. Está à venda, com outros sete prédios, dos quais apenas ficará a fachada. Há vozes críticas a este tipo de intervenção.
Do edifício da Avenida Duque de Loulé 70, onde morou a fadista Hermínia Silva e onde funcionou durante anos a delegação do Jornal do Fundão, restará apenas o cenário da fachada, se for por diante a ideia do proprietário, que o colocou à venda.
O edifício é parte integrante de um conjunto de oito imóveis de finais do século XIX e princípios de XX a alienar de uma só vez, segundo um projecto de reabilitação que prevê a manutenção de fachadas e a demolição e renovação dos interiores.
“Inacreditável. É incrível o que estão a fazer ao património da cidade. Qualquer dia esta avenida é só cenário”, comentou um antigo morador da Avenida Duque de Loulé, ao ver o cartaz afixado pela consultora imobiliária Cushman & Wakefield no prédio agora à venda.
“Vi muitas vezes de lá sair a Hermínia Silva, que ali morava. E ali funcionava também a delegação do Jornal do Fundão”, contou ao Corvo António Infante.
Memórias dessa época tem o jornalista Fernando Paulouro – sobrinho do fundador do Jornal do Fundão, António Paulouro – que se recorda do período em que a delegação de Lisboa ali funcionou, “entre 1973, ainda antes do 25 de Abril, e 1978”.
“Tenho uma memória bem presente de ali encontrar várias vezes a Hermínia Silva. Era a nossa vizinha. A delegação do Jornal do Fundão era no terceiro direito e ela morava em frente”, contou Fernando Paulouro, que se lembra que o edifício “era muito bonito e tinha um elevador muito antigo”.
No andar de baixo, funcionou também a redacção de O Semanário, criado por Marcelo Rebelo de Sousa e, nos anos setenta do séc. XX, “foi também naquele edifício que surgiu uma revista de poesia que é hoje uma coisa rara, editada pelo Herberto Hélder, pelo António Paulouro e pelo artista plástico António Sena” – a Nova – Magazine de Poesia e Desenho – da qual só saíram dois números, recorda Fernando Paulouro, “Nasceu lá, também a editora Relógio D’Água”, diz ainda sobre o edifício que esteve ligado à vida literária e jornalística da cidade de Lisboa.
Mais tarde o prédio foi deixado ao abandono. “Eu passava lá e via que estava a degradar-se. E não sei se actualmente não necessitará de uma intervenção forte nas estruturas”, diz Fernando Paulouro, manifestando o desejo de que pelo menos se mantenha a fachada, que é também uma memória.
Actualmente, e apesar de estar à venda, ele apresenta-se de janelas esventradas, algo que não ajuda seguramente à sua preservação.
O anúncio em que, de uma assentada se colocam à venda estes oito prédios da zona da Duque de Loulé está online, na página da consultora imobiliária Cushman & Wakefield, intermediária do dono dos imóveis. Mas é também bem visível para quem passe naquela zona da cidade, pois consta nas grandes telas afixadas nos prédios – ao nº70 da Avenida Duque de Loulé junta-se uma fiada de quatro prédios da Rua do Andaluz e mais três no Largo das Palmeiras.
Todos se situam num mesmo quarteirão, mas a sua implantação é descontínua e separada em três blocos – algo que o projecto apresentado pelo proprietário à Câmara Municipal de Lisboa pretende alterar, criando um embasamento comum aos oito edifícios, reunidos para uma só intervenção.
De acordo com a Cushman & Wakefield, o projecto tem “uma área bruta de construção de 12.067 metros quadrados”, repartida por “três lotes resultantes de emparcelamento dos oito prédios urbanos divididos em habitação, hotel e escritórios e com 258 lugares de estacionamento”.
“O projecto chegou a ser aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa e a ter licença. Mas ela caducou, antes de se efectivar a venda. A maioria dos candidatos à compra pretende manter as fachadas. Até porque, no caso do edifício da Duque de Loulé seria criminoso” disse ao Corvo fonte da Cushman & Wakefield.

Outro dos edifícios de que só ficará a fachada, no Largo das Palmeiras
E agora, de acordo com a mesma fonte, “há várias opções para os possíveis compradores dos imóveis – que o proprietário chegou a admitir vender separadamente, mas que quer afinal vender em conjunto. Ou aproveitar o projecto existente e introduzir algumas alterações, ou começar da estaca zero e apresentar novo projecto à câmara”.
Crítico desta forma de intervir na cidade consolidada mostrou-se já o movimento Fórum Cidadania Lx, que pediu esclarecimentos ao vereador com o pelouro do urbanismo, Manuel Salgado.
A confirmar-se a intervenção prevista, “é um ataque inaceitável à Lisboa consolidada e ‘histórica’ como a classifica o novo Plano Director Municipal”, diz o Fórum Cidadania Lx, na carta que endereçou a Manuel Salgado, ao presidente da Câmara de Lisboa e ao presidente da Junta de Freguesia de Santo António, Vasco Morgado.
Se o projecto for por diante nestes moldes, acrescenta, será “a primeira vez que uma operação deste tipo – demolição em massa de interiores num quarteirão, com impermeabilização total dos logradouros através de caves para estacionamento num embasamento comum – ocorre no centro de Lisboa, na cidade consolidada”.
Para o movimento de cidadãos, estes “edifícios merecem ser preservados e reabilitados de forma cuidada, sem recorrer a “reabilitações” travestidas de construções novas – solução fácil tão do agrado dos promotores imobiliários assim como dos sucessivos executivos camarários”.
O Corvo colocou a questão ao gabinete do vereador Manuel Salgado e tentou apurar se existem condicionantes impostas pela Câmara às intervenções previstas para a zona da Avenida Duque de Loulé, mas até segunda-feira à tarde “os serviços não conseguiram dar resposta à questão, que têm de analisar”, disse fonte do gabinete de comunicação da Câmara Municipal de Lisboa.
“Na prática, dos 8 prédios de finais de XIX, princípio de XX, restarão apenas as fachadas, ‘normalizadas’ pela contemporaneidade, tudo o resto será novo, haverá alinhamento de cérceas, impermeabilização de solos, num exemplo perfeito do que não devemos fazer à cidade histórica”, conclui.